5.10.06

Espelho

Ela me olha. Agora mesmo, escrevo quase no escuro que é pra ela não ver o que eu estou pensando. O que é foda de se saber olhado por ela não é a censura – sabe-se lá o que ela pensa enquanto olha, fica me analisando como peixe em aquário – foda mesmo é o que ela faz com a mão: fica esfregando a ponta do dedo indicador na ponta do dedão e fazendo um barulhinho quando as unhas se batem. Um dia perguntei e ela explicou que tinha a mania de ficar escrevendo os pensamentos, escreve na própria pele que é pra não correr o risco de esquecer. E ela me olha tanto que só o barulho dela olhando já me dá arrepio, quando escuto o tique tique da unhas de longe já fico imaginando o que foi que ela escreveu de mim dessa vez.
Ela me olha, e eu me escondo. Não tenho nada a esconder dela, pelo contrário, quero que ela não me veja quando me vê, que se veja, que se saiba aqui de tão saber que sabe tudo de mim, mas não quero que ela saiba por descobrir, porque não é aqui só que está, eu tô mais lá que aqui. Por isso é que dói tanto o olhar dela. Ela me olha curiosa, como que esperando algo que eu não sei o que é - como posso, não saber o que é que ela espera? Tá tudo aqui sim, meu benzinho, tudo o que você quiser eu tenho aqui comigo. Mas e se eu falo a coisa errada? Nem faço idéia de quanto é que eu tenho no placar, vai que eu to perdendo ponto. Não é pra ela saber que eu não sei, não é pra ela se decepcionar com o que eu não sei, com o que eu mostrar, com o que eu não mostrei... Pára de me olhar mulher!

Da primeira vez que eu vi esse olhar dela não foi de lá, foi daqui, era eu que olhava, e também não era ela lá, era outra. E eu sei bem o que é que passava na minha cabeça enquanto eu olhava, e isso é o que mais me faz ter medo do olhar dela. Mas ela me olha faz tanto tempo! Ninguém espera tanto - uma hora a gente desiste: toda a gente desiste. Eu desisti, cansei de esperar, sabia que o que eu esperava tava lá só que fundo demais, longe demais... desisti, cansei. E ela, não cansa nunca?

Ela não sai de trás de mim, do lado, de espreita... até dormindo me vê. De vez em quando eu esqueço e cruzo o olhar, aí ela sorri, deve ser um bom sinal mas eu que não me arrisco mais. Da última vez que eu vi, quase que me afoguei, perdi o ar, perdi o chão, o sangue empedrou e nada o fazia correr de novo... Isso me faz fugir dela, evitar andar na minha própria casa, evitar falar, segurar minhas mãos – mas não estou me escondendo, estou só adiando.

Outras vezes me encho de coragem e falo. Junto tudo o que é força, torcendo de tudo pra que não precise de tréplica, e falo. Mas aí, quando começa a passar o ar pelas cordas vocais as palavras fogem e no desespero eu acabo pensando qualquer outra coisa, balbucio umas palavrinhas bestas caçadas na hora. Aí está o erro: eu bato. É sem querer: um não sei, quem sabe, talvez... qualquer palavra que a deixe na dúvida - que sei que pra ela a dúvida é pior que um tiro (e se eu falo não sorrindo, é na verdade um sim disfarçado, escondido, pra ela achar, mas ela não quer nem saber, nem procura - talvez já esteja de saco cheio.) Ela retruca as porradas sem pestanejar, responde às minhas cócegas com rasteiras, cada provocação com um tiro, um bico, cara feia. Me mata aos pouquinhos, vai vendo.

Hoje tem jogo do meu time na tv e ela não pára de olhar, quem é que se concentra pra ver um jogo com ela olhando? Na final do brasileiro, pedi pra ela parar, ir ver filme no quarto, ler um livro, sair com as amigas, o quer que fosse... e ela não gostou, ficou bravinha, juntou as coisas e foi embora. Ficou uma semana longe de casa, voltou no dia seguinte, mas não me falou pra onde foi. Nem fazendo bico. Aqui, foi como se ela não tivesse ido: continuava na casa, me olhando. Foi pior, tava no trabalho, e até no banheiro a desgramada foi me ver. Essa semana, um dia, foi foda, ela não saiu do meu lado, me azucrinando. Depois ainda ficou triste quando eu falei que ela não largava do meu pé; acho que ela não percebe.

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